Sensibilidade: de onde vem nossa capacidade de nos afetar com o outro?


Uma profissional de referência pra nossa família descreveu o Benki como uma criança/adolescente sensível. Uma pessoa da família, escutando isso, questionou se essa era uma característica positiva, porque lhe parecia ter um aspecto negativo, talvez mesmo uma desvantagem. Minha resposta imediata foi que a sensibilidade não era nem positiva nem negativa, apenas uma característica com a qual ele precisa lidar – e nós, como adultos cuidadores, precisamos apoiá-lo a se relacionar com o mundo a partir dela.

Eu consigo reconhecer que essa compreensão vem de um lugar de alguns anos de exercício de desconstrução da visão binarista, tão parte da nossa cultura, que nos faz o tempo inteiro classificar as coisas (e pessoas!) como positivas ou negativas, boas ou más, certas ou erradas, e por aí vai.

Dias depois, vendo na rua uma pessoa pedindo dinheiro no sinal, com um cartaz onde estava escrito algo mais ou menos assim: “Me ajude! Estou desempregado, tenho 3 filhos”, senti um aperto no peito. Um desconforto real. E me reconheci também como uma pessoa sensível. De repente uma dúvida me invadiu a mente: de onde vem esse desconforto? Por que meu peito dói, se não sou eu que estou nessa condição? De onde será que vem essa capacidade de nós – humanos – nos afetarmos pela condição do outro?

E fiz um rápido passeio pelas minhas últimas 15 mil horas de leituras, aulas, vídeos e podcasts sobre biologia, história, antropologia, psicologia, biodança, educação, comunicação não violenta… e cheguei à conclusão a seguir – que quero compartilhar com vocês.

Ao longo do tempo, enquanto o ser humano ia se tornando humano, foi desenvolvendo habilidades que (n)os tornavam mais capazes de nos levar adiante enquanto espécie. Perceber o mundo era uma delas: saber quando viria um perigo em forma de tempestade ou enchente, onde haveria mais alimento para coletar ou caçar, qual o melhor momento para migrar para outro local e qual seria um bom terreno pra plantar e fixar moradia. Provavelmente a percepção dos outros seres humanos com os quais conviviam também era parte desse repertório.

Mas há algo mais. Imagina (e eu fiz esse exercício de imaginação também) um bando de ancestrais nossos há alguns milênios atrás ou uma comunidade mais recente isolada na floresta. Imagina que um membro desse bando ou comunidade está ferido ou doente – ou seja, sofrendo. Essa condição tem algumas implicações:

- se é um ferimento com sangue, pode atrair predadores que colocarão em risco todos do grupo;
- se trata-se de um adulto que colabora através do seu trabalho (pescar, caçar, coletar frutos, plantar ou cuidar dos animais), sua ausência pode ter uma implicação no sustento da comunidade;
- se for um bebê ou uma criança, sua vida pode estar em perigo, o que põe em risco, em alguma medida, a continuidade do grupamento como um todo;
- se é um idoso, há toda uma sabedoria, uma série de informações e conhecimentos importantes para o grupo, que estão há ponto de desaparecer para sempre.

Ou seja, quando algo acontece a um membro do grupo que o coloca em uma condição de dor ou sofrimento, todos os outros são de alguma forma impactados.

Essas condições desvelam algo que também é real pra nós hoje em dia (vivendo em grandes cidades e isolados em apartamentos), mas menos perceptível: somos interdependentes! O que acontece a um afeta a todos, e muitas pesquisas científicas tem reforçado essa compreensão tão presente – já há tanto tempo – na sabedoria de povos originários e tradições espirituais e filosóficas.



Pausa para um momento poético:

“Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma;
todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme.
Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor,
como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um teu amigo, ou o teu próprio.
A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido;
por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti.”


(John Donne)



Então fica fácil compreender de onde vem a nossa sensibilidade – ainda mais levando em conta que nosso projeto anatomofisiológico muda numa velocidade muito pequena se comparada às mudanças culturais. Nós seres humanos fomos “talhados” para nos importar com o que acontece ao outro, sob pena de nossa sobrevivência ou bem estar ficar comprometido – individual e coletivamente.

A sensibilidade é o que permite a nós, seres humanos, nos implicar no cuidado com o outro e com o todo, pra garantir as condições necessárias ao nosso bem viver. Então, saindo da lógica dicotômica do positivo x negativo, me parece que a sensibilidade tem algumas vantagens do ponto de vista evolutivo, ainda mais quando lembramos que estamos vivendo um momento decisivo na continuidade (ou não) da humanidade sobre a Terra. Faz sentido pra você?