Quarentena - A epifania por trás do caldo de galinha


Sei, postar foto de comida já tá demodê. Mas por trás dessa foto do risoto tem uma história interessante. Quer ouvir?

Comprei uma galinha caipira de um amigo meu. Galinha criada no terreiro dele, comendo milho e mato. Minha mãe fez a gentileza de cozinhar a galinha pra mim - eu não cozinho carne em casa. Mandou metade da galinha cozida - e comeu a outra metade, claro. Gentileza gera gentileza. Comemos metade da metade da galinha no almoço e guardamos a outra metade da metade pra amanhã. Mas quando fui armazenar, o caldo era muito e coloquei em um recipiente separado.

De noite, fomos fazer um risoto pro jantar e Taís lembrou: "que tal a gente colocar um pouco do caldo da galinha?". Parênteses: quem cozinha aqui talvez saiba que receitas de risoto sempre levam caldo de legumes ou de galinha. Aqui geralmente cozinhamos umas folhas e talos de legumes pra fazer o tal caldo. Mas dessa vez, raridade, tínhamos uma galinha cozida na geladeira. E seu caldo.

Enfim, peguei o depósito com o caldo na geladeira. Ele, gelado, tinha virado uma gelatina. Peguei um pedaço daquela gelatina com a colher e paralisei por um instante. De repente me dei conta: a indústria transformou aquilo em um tablete. E pra levá-lo pro supermercado, com uma longa validade , adicionou sódio e um monte de conservantes. E colocou numa caixa colorida com o desenho de uma galinha, pasmem, azul! (Claro, tem outras versões também, com desenhos mais verossímeis, por isso mesmo, mais perigosas).

Como Ana que ficou paralisada vendo um cego mascar chicletes no bonde*, eu estava diante de uma epifania: o caldo da galinha criada no terreiro comendo milho e mato, morta e tratada pelo meu amigo, cozinhada pela minha mãe e comida por mim, foi transformado em um tablete e se encontra por um preço acessível em qualquer supermercado.

Bem, pra ser sincera, tenho vivido epifanias assim desde que iniciou a quarentena. Ficar mais tempo em casa e ter que montar um plano estilo Missão Impossível pra ir no supermercado, tem me colocado diante de uma verdade. Olho pras coisas e vejo, estupefata, como tudo foi transformado em mercadoria.

E sabe qual o efeito de simplesmente abrir a torneira  e sair água - uma água pela qual você paga num certo dia do mês? É bem diferente de ter que ir buscar água numa lagoa onde mora a Mãe D'água. E qual o efeito de comprar ervas pra chá empacotadas no supermercado? É bem diferente de colhê-las no jardim, agradecendo à planta.

Transformar as coisas em mercadoria tem vários efeitos, o primeiro deles: nos desconectar da Natureza. Daí vem banalização, desperdício, poluição, obesidade, adoecimentos, exploração do trabalho, concentração de riqueza, e muito mais.

Não quero aqui romantizar a vida no campo nem dizer que antigamente é que era bom. Mas sinto cada vez mais necessidade de me re-conectar um tanto mais com os ciclos da Natureza. Isso tem me trazido saúde (sempre) e um pouco mais  de paz nesses dias.

E por aí, o que vocês usam no dia a dia que não foi comprado no supermercado?

*Clarice Lispector em Laços de Família.